domingo, 27 de setembro de 2009


Uma mesma capa



Sou dois livros com uma mesma capa. Dois estilos diferentes de uma só história. Sou lida consoante os dias, os tempos, as alturas. Sou duas faces e mostro uma mesma cara. Quem me lê aprofundadamente conhece todas essas diferenças que me tornam tão igual a mim mesma. Mergulho num mar de palavras quando não suporto mais a pressão de todos os sentimentos que me dominam e que fazem de mim um cofre de lotação completamente esgotada. Consigo ser o que não sou porque parte de mim quer fugir de uma rotina fatigante e que me assombra. Tento, no entanto, e posteriormente, regressar a mim; a um eu que desprezo verbalmente e que adoro espiritualmente. Quando regresso a mim posso analisar todos os erros que cometi, posso tentar soluciona-los. Peço desculpa, sou um mero ser humano envergado por sensações e acontecimentos que moldam a sua reacção. Possuo, no entanto, uma personalidade que me define e essa, garanto, não mudara. Porque posso ser dois livros diferentes, mas possuo a mesma capa. E a mesma historia.

Vera Garcia

sábado, 26 de setembro de 2009



Não sei se saberei descrever
o vício das mãos. Sei, amor, que das asas dos pássaros
tiraste o entendimento e
pelo desejo ardendo no sentido da pele
reabres essa flor que os espantos floresce.
Absorvida em ti, me consumo no ritmo lento
de esperar a consumação dos dedos
na fogueira que o amor descreve.
Entras pelas mãos no meu vício
e nele ficamos os dois retidos
na mesma insinuação.
Nada mais nos sobra que a memória
desse instante:
Consumidos de sois ardentes,
reapoderamo-nos das luzes tacteis
que o coração das sombras nos permite.

Bernardete Costa


Cavalo à Solta




Minha laranja amarga e doce
Meu poema feito de gomos de saudade
Minha pena pesada e leve
Secreta e pura
Minha passagem para o breve
Breve instante da loucura
Minha ousadia, meu galope, minha rédia,
Meu potro doido, minha chama,
Minha réstia de luz intensa, de voz aberta
Minha denúncia do que pensa
Do que sente a gente certa
Em ti respiro, em ti eu provo
Por ti consigo esta força que de novo
Em ti persigo, em ti percorro
Cavalo à solta pela margem do teu corpo
Minha alegria, minha amargura,
Minha coragem de correr contra a ternura
Minha laranja amarga e doce
Minha espada, meu poema feito de dois gumes
Tudo ou nada
Por ti renego, por ti aceito
Este corcel que não sossego
À desfilada no meu peito
Por isso digo canção castigo
Amêndoa, travo, corpo, alma
Amante, amigo
Por isso canto, por isso digo
Alpendre, casa, cama, arca do meu trigo
Minha alegria, minha amargura
Minha coragem de correr contra a ternura
Minha ousadia, minha aventura
Minha coragem de correr contra a ternura.

José Carlos Ary dos Santos

segunda-feira, 14 de setembro de 2009



Vem sentar-te comigo, Lídia, à beira do rio.
Sossegadamente fitemos o seu curso e aprendamos
Que a vida passa, e não estamos de mãos enlaçadas.
(Enlaçemos as mãos).

Depois pensemos, crianças adultas, que a vida
Passa e não fica, nada deixa e nunca regressa,
Vai para um mar muito longe, para o pé do Fado,
Mais longe que os deuses.

Desenlacemos as mãos, porque não vale a pena cansarmo-nos.
Quer gozemos, quer não gozemos, passamos como o rio.
Mais vale saber passar silenciosamente.
E sem desassossegos grandes.

Fernando Pessoa