quarta-feira, 29 de julho de 2009

Carta de Orfeu a Eurídice



Aqui, é o centro. Onde a solidão me
impregna com o seu sudário de lodo, e a humidade dos fundos
desce pelos vidros da noite, apagando as imagens
amadas. No entanto, parto esses vidros para ver o que
ficou para trás: que alquimia de sensações corre ainda
por esses campos onde avançavas, com a falsa convicção
do amor, levando-me atrás de ti até ao limite
de onde não há regresso? Que abraço de corpos sobrevive
no chão seco de palavras, enquanto te levantas da memória,
e o teu rosto se ilumina por entre os brilhos da manhã?

Parece-me que é tarde para acertar as coisas
que deviam ter sido feitas: ajustar as peças do presente nessa mesa
onde se acumulavam copos e papéis; separar as questões que
os dedos escondiam das respostas que entravam pela boca
do desejo, até um êxtase de mãos e de olhos. Contei as queixas,
transformei-as na mais doce das celebrações, arrastei
o instante até à berma da eternidade: e trouxe de volta
a mais dolorosa das ilusões. De cada vez, porém, era
único esse tempo nascido de uma partilha de lugares; e
não dei pelo vento que soprava de dentro da vida, levando
em direcções diferentes os passos que nos juntavam.

O futuro pertence aos cegos da imaginação; as suas
paisagens estendem-se por esses caminhos que não voltaremos a
seguir, até aos arbustos do horizonte. Não ouço nenhuma voz
nos pórticos que se abriram para a mais efémera das alegrias -
que se confunde com um rosto incessante no interior
da alma, a pura inscrição do amor. Guardo-te aí, flor matinal,
esperando que a água da vida te refloresça, e uma nova
vibração te devolva à ilusão do presente. O centro é este: o lugar
do encontro, onde os deuses nos roubam ao acessório,
e um todo se fixa no que é aparente, e passa.


Nuno Júdice

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