sexta-feira, 22 de outubro de 2010

Não Há Coincidências - Margarida Rebelo Pinto




Quando li este excerto do livro da Margarida Rebelo Pinto achei assombrosa a forma que a autora usou para transmitir os sentimentos da personagem, como se fosse algo real e não imaginário!
Cheguei a ler num blogue parte deste mesmo excerto que um filho usou para transmitir à sua mãe o que sentia por ela. A falta de amor que foi sentindo da sua parte ao longo dos anos, as desilusões. Mas, no fim dizia que a perdoava, pois só assim poderia seguir em frente.
Duas ou três pessoas que eu conheço leram este mesmo excerto e se identificaram com ele também. Em algum cantinho do texto há sempre algo que parece escrito, sentido, vivido por cada um nós.
Por isso, aqui fica! Pode ser que faça jeito a mais alguém ;).



"Não sei como começar esta carta, nem sei se ela fará algum sentido, mas preciso de te transmitir tudo o que ficou por dizer, antes que rebente de mágoa e de tristeza, antes que os dias se sucedam num absurdo tão vazio e idiota que perca a vontade de viver.
Tenho à minha frente o caderno que te comecei a escrever, uma espécie de diário da minha paixão contida por ti, aquele que nunca quiseste ler, embora me tivesses alimentado a esperança de um futuro longínquo, que um dia talvez pudéssemos partilhar, um projecto de vida futura que nunca passou da minha imaginação ou do teu delírio. Mas de que vale o amor sem um futuro sonhado, mesmo que nunca se concretize?
Toda a nossa existência tem por condição a infidelidade a nós próprios. Fui muitas vezes na minha vida, infiel aos outros, mas sobretudo a mim própria, quando me recusava a escutar o meu próprio coração.
Olho para trás e vejo com tristeza que os meus erros contaminaram as recordações do tempo em que ainda não os havia cometido e isso faz-me sentir culpada de coisas que não fiz. Por isso aplico a mim mesma uma espécie de autoflagelação, esperando que a dor infligida apague a original e, quando a segunda se esfumar, pouco mais reste da primeira, a não ser o sabor eterno e amargo de uma perda irreparável.
O primeiro erro que cometi foi ter-me apaixonado por ti. Não sei ainda hoje explicar o que me aconteceu. É como se de repente tivesse saído de dentro de mim própria e assistisse ao desenrolar da paixão que crescia desmesuradamente, sem quereres ou saberes, tenhas tocado nos pontos cardeais da minha insegurança e deles se tivesse acendido uma luz que segui, cega e surda, como os insectos numa noite de Verão à volta de uma lâmpada que alguém se esqueceu de apagar. Mas o amor é mesmo assim: absoluto, estúpido e tudo menos sensato. Ou talvez me tenha apaixonado apenas pela tua imagem e, quando te tornaste real aos meus olhos, te tenha adaptado a um ideal humanamente perfeito, à luz do meu desejo. De qualquer forma, apaixonei-me por ti e esse foi o erro primordial, o primeiro de todos, provavelmente o único importante. Os outros erros nunca se teriam dado se este primeiro não tivesse crescido como uma bola de neve perdida numa avalanche.
O segundo erro, e deste assumo toda a culpa, foi não te ter escondido que te amava. Queria-te tanto que pensei que isso te obrigaria a amar-me. Como fui burra e infantil! O amor e a gratidão nada têm a ver um com o outro, embora ambos mascarem estados de afecto. O amor não se procura. Simplesmente vem-nos parar às mãos e só amamos o que é diferente, mesmo que nos pareça de algum modo semelhante. Tu tens essa diferença, que me cativou. Mas devia ter aprendido a escutar os teus sinais e a decifrá-los, antes de me denunciar com os meus, bem menos subtis, bem mais temerários. Sou uma guerreira, o amor é a minha arma. O meu coração é o meu escudo, avanço sem lança nem capacete, caio e levanto-me as vezes que for preciso, mas não paro nunca. A não ser que o caminho se feche. Quando te foste embora, percebi que a tua porta se tinha fechado para sempre. O coração quando se fecha faz muito mais barulho do que uma porta, e acredita, oiço ainda o barulho do teu silêncio, como uma pedra encostada à garganta. Mas serviu-me para aprender algumas coisas, entre as quais que estar quieta também é uma acção. E ao ficar quieta, consegui parar de sonhar, e comecei a viver cada dia um atrás do outro, a sair para a rua e respirar o ar aquecido pela luz do Sol como uma dádiva de Deus. Quando sonhamos muito corremos o risco de deixar de viver neste mundo, passamos para outra dimensão e não raras vezes transportamos connosco aqueles que amamos. E aquilo com que sonhamos, passa a ser nosso desejo e é em função disso que respiramos, vivemos, adormecemos e acordamos.
O meu terceiro erro, já te disse qual foi. Caímos num duplo equívoco: nunca acreditaste que eu gostasse de ti e sempre gostei; nunca acreditei que não me amasses e afinal não chegaste sequer a gostar de mim. No amor, os homens são paranóicos e as mulheres obsessivas. Eles não acreditam no amor delas e elas não admitem a falta de amor neles.
Amei-te de uma forma desajeitada, arrebatadora e incondicional, sempre querendo e desejando o melhor para ti. O melhor, só tu mesmo poderás encontrar e hoje estou certa que não passa por mim.
Não é a dor da rejeição que me massacra, é a dor de saber que nada poderá sobrar deste amor. Que a amizade não tem espaço nem voz entre nós.
Cada vez mais acredito que amar é dar e tudo o que não é dado, perde-se. E que a amizade é talvez a mais bela forma de amor, porque é gratuita e intemporal, não precisa de promessas nem de carne, nem se desfaz com zangas, nem se desvirtua com o tempo. Mas não te posso dar o meu carinho, o meu afecto, o meu amor domesticado em amizade, se nem sequer tens a grandeza de abrir os braços para a receber. Com a morte deste amor por ti, morre também uma parte de mim, algo cujos contornos não consigo ainda delinear mas que com o tempo perceberei, quando a alma apaziguada fechar as feridas desta minha dor derrotada e passiva perante o teu silêncio e a tua mascarada indiferença.
Mas é melhor que nunca mais se cruzem os nossos olhares, é melhor que a palavra adeus seja mesmo essa e não outra. Chegámos ao fim do caminho. A partir daqui todas as palavras serão inúteis.
Nunca saberei até que ponto ages com o coração ou apenas com a cabeça. Até que ponto te entregas ou apenas jogas. Até que ponto sentes e ages, ou apenas observas. E é por nunca ter sabido quem és, que um dia te conseguirei esquecer."

Margarida Rebelo Pinto - Não Há Coincidências

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